Sobre fundamentalistas e fundamentalistas
Regressei hoje do Nordeste, onde estive de férias o mês de janeiro. Reinicio as atividades no blog com um post sobre fundamentalismo. O tema vem de uma sugestão da Norma Braga, em um comentário recente aqui no blog. A sugestão é muito pertinente, pois à semelhança de outros rótulos nos meios evangélicos, esse também é mal compreendido e mal empregado. Além do mais, é esse o rótulo preferido por alguns para se referir a quem adere com firmeza a determinadas doutrinas que são consideradas como antigas e ultrapassadas. Nada mais natural do que procurar esclarecer o assunto. Acho que a primeira coisa é falar sobre os vários tipos de fundamentalistas cristãos.
O fundamentalista cristão histórico não existe mais. Ele existiu no início do século XX, durante o conflito contra o liberalismo teológico que invadiu e tomou várias denominações e seminários nos Estados Unidos. J. G. Machen, John Murray, B. B. Warfield, R. A. Torrey, Campbell Morgan, e mais tarde Cornelius Van Til e Francis Schaeffer, são exemplos de fundamentalistas históricos.
O fundamentalista americano ainda existe, mas perdeu muito de sua força. Embora tenha surgido ao mesmo tempo que o histórico, separou-se dele quando adotou uma escatologia dispensacionalista, aliou-se à agenda republicana dos Estados Unidos, exerceu uma militância belicosa contra tudo que considerasse inimigo da fé cristã, como o comunismo, o ecumenismo, o liberalismo, a ciência moderna e o próprio evangelicalismo. Defendia e praticava o separatismo institucional de tudo e todos que estivessem ligados direta ou indiretamente a esses inimigos. Recentemente faleceu o que pode ter sido o último grande representante desse gênero de fundamentalista, o famigerado Carl McIntire. Alguns consideram que Pat Robertson é seu sucessor, embora haja muitas diferenças entre eles.
O fundamentalista denominacional é aquele membro de denominações que se consideram oficialmente fundamentalistas e que até trazem o rótulo na designação oficial. Após um período de grande florescimento no Brasil, especialmente no Nordeste e em São Paulo, as igrejas fundamentalistas, presbiteriana e batista, sofreram uma grande diminuição em suas fileiras. Grande parte das igrejas fundamentalistas presbiterianas regressaram à Igreja Presbiteriana do Brasil, de onde saíram na década de 50. Em alguns casos, o fundamentalismo denominacional do Brasil foi marcado por laços financeiros e ideológicos com McIntire. Hoje, até onde eu sei, não há mais esse laço. No Brasil, o fundamentalismo denominacional que sobrou desenvolveu uma síndrome de conspiração mundial para o surgimento do Reino do Anticristo através do ocultismo, da tecnologia, da mídia, dos eventos mundiais, das superpotências. Acrescente-se ainda o desenvolvimento de uma mentalidade de censura e apego a itens periféricos como se fossem o cerne do evangelho e critério de ortodoxia (por exemplo, só é bíblico e conservador quem usa versões da Bíblia baseadas no Texto Majoritário, quem não assiste desenhos da Disney e não assiste “Harry Potter”).
O fundamentalista xiita é sinônimo de intransigência, inflexibilidade, ser-dono-da-verdade e patrulhamento teológico. Esse tipo tem mais a ver com atitude do que com teologia. Nesse caso, é melhor inverter a ordem e chamá-lo de xiita fundamentalista. Na verdade, xiitas podem ser encontrados em qualquer dos campos protestantes. A propalada tolerância dos liberais, neoliberais e neo-ortodoxos é mito. Há xiitas liberais, neoliberais, neo-ortodoxos, e obviamente, xiitas fundamentalistas. Teoricamente, alguém poderia ser um fundamentalista histórico e denominacional e ainda não ser um xiita.
Por fim, o fundamentalista teológico, um outro sentido em que o termo é muito usado. O fundamentalista teológico se considera seguidor teológico dos fundamentalistas históricos e simpatiza com a luta deles. Sem pretender ser exaustivo, acredito que são considerados fundamentalistas teológicos atualmente os que aderem aos seguintes conceitos ou a parte deles: a inerrância da Bíblia (sobre isso vou falar noutro post), a divindade de Cristo, o seu nascimento virginal, a realidade e historicidade dos milagres narrados na Bíblia, a morte de Cristo como propiciatória, sua ressurreição física de entre os mortos, seu retorno público e visível a este mundo, o conceito de verdades teológicas absolutas, o conceito de que Deus se revelou de forma proposicional, a aceitação dos credos e confissões da Igreja Cristã, a adoção do método gramático-histórico de interpretação bíblica, uma posição conservadora em assuntos como aborto e eutanásia, a preferência pela pregação expositiva, gosto pelos escritos dos puritanos antigos e modernos (vixe, lá vou ter que escrever um post sobre isto também...), a rejeição do liberalismo teológico e da neo-ortodoxia, a crença que Deus criou o mundo em sete dias, a rejeição da ordenação feminina, não-rejeição da pena de morte e outros. Há quem queira acrescentar a essa lista os que votaram contra o desarmamento, são contra o esquerdismo brasileiro, gostam dos Estados Unidos, e mais recentemente, os que adicionaram à lista de favoritos o blog de Norma Braga e o Tempora-Mores...
Em linhas gerais, o fundamentalista teológico acredita que a verdade revelada por Deus na Bíblia não evolui, não cresce e nem muda. Permanece a mesma através do tempo. A nossa compreensão dessa verdade pode mudar com o tempo; contudo, essa evolução nunca chega ao ponto radical em que verdades antigas sejam totalmente descartadas e substituídas por novas verdades que inclusive contradigam as primeiras. O fundamentalista teológico reconhece que erros, exageros e absurdos tendem a ser incorporados através dos séculos na teologia cristã e que o alvo da Igreja é sempre reformar-se à luz dos fundamentos da fé cristã bíblica, expurgando esses erros e assimilando o que for bom. Admite também que existe uma continuidade teológica válida entre o sistema doutrinário exposto na Bíblia e a fé que abraça hoje.
Acho que é aqui que está a grande diferença entre o fundamentalista teológico e o neoliberal. Esse último acredita na evolução da verdade a ponto de sentir-se comissionado a reinventar a Igreja e escrever novas confissões de fé.
Muitos me chamam de fundamentalista. Bom, não posso ser fundamentalista histórico, pois nasci muito depois da luta de Machen. Contudo, sou fã dele, que era um perito em Novo Testamento. Não sou um fundamentalista americano, pois sou brasileiro (apesar do nome), nunca recebi um tostão de McIntire e sou amilenista. Aliás, nem conheci McIntire pessoalmente. Fui fundamentalista denominacional por decisão dos meus pais quando eu tinha doze anos. Saí após conversão e entrada no ministério pastoral. Também não me acho xiita. Há controvérsia sobre isso, eu sei.
Na categoria de fundamentalistas teológicos encontramos presbiterianos, batistas, congregacionais, pentecostais, episcopais, e provavelmente muitos outros. É claro que nem todos subscrevem todos os pontos acima e ainda outros gostariam de qualificar melhor sua subscrição. Contudo, no geral, acho que posso dizer que os fundamentalistas teológicos não fariam feio numa pesquisa de opinião sobre o que crêem os evangélicos brasileiros. Por esse motivo, e por achar que o assim chamado fundamentalismo teológico é simplesmente outro nome para a fé cristã histórica, não fico envergonhado quando me rotulam dessa forma, embora prefira o termo calvinista ou reformado.
Como link para esse post, sugiro os artigos que tenho escrito sobre o assunto no site da Editora Vida Nova (http://www.teologiabrasileira.com.br/).
O fundamentalista cristão histórico não existe mais. Ele existiu no início do século XX, durante o conflito contra o liberalismo teológico que invadiu e tomou várias denominações e seminários nos Estados Unidos. J. G. Machen, John Murray, B. B. Warfield, R. A. Torrey, Campbell Morgan, e mais tarde Cornelius Van Til e Francis Schaeffer, são exemplos de fundamentalistas históricos.
O fundamentalista americano ainda existe, mas perdeu muito de sua força. Embora tenha surgido ao mesmo tempo que o histórico, separou-se dele quando adotou uma escatologia dispensacionalista, aliou-se à agenda republicana dos Estados Unidos, exerceu uma militância belicosa contra tudo que considerasse inimigo da fé cristã, como o comunismo, o ecumenismo, o liberalismo, a ciência moderna e o próprio evangelicalismo. Defendia e praticava o separatismo institucional de tudo e todos que estivessem ligados direta ou indiretamente a esses inimigos. Recentemente faleceu o que pode ter sido o último grande representante desse gênero de fundamentalista, o famigerado Carl McIntire. Alguns consideram que Pat Robertson é seu sucessor, embora haja muitas diferenças entre eles.
O fundamentalista denominacional é aquele membro de denominações que se consideram oficialmente fundamentalistas e que até trazem o rótulo na designação oficial. Após um período de grande florescimento no Brasil, especialmente no Nordeste e em São Paulo, as igrejas fundamentalistas, presbiteriana e batista, sofreram uma grande diminuição em suas fileiras. Grande parte das igrejas fundamentalistas presbiterianas regressaram à Igreja Presbiteriana do Brasil, de onde saíram na década de 50. Em alguns casos, o fundamentalismo denominacional do Brasil foi marcado por laços financeiros e ideológicos com McIntire. Hoje, até onde eu sei, não há mais esse laço. No Brasil, o fundamentalismo denominacional que sobrou desenvolveu uma síndrome de conspiração mundial para o surgimento do Reino do Anticristo através do ocultismo, da tecnologia, da mídia, dos eventos mundiais, das superpotências. Acrescente-se ainda o desenvolvimento de uma mentalidade de censura e apego a itens periféricos como se fossem o cerne do evangelho e critério de ortodoxia (por exemplo, só é bíblico e conservador quem usa versões da Bíblia baseadas no Texto Majoritário, quem não assiste desenhos da Disney e não assiste “Harry Potter”).
O fundamentalista xiita é sinônimo de intransigência, inflexibilidade, ser-dono-da-verdade e patrulhamento teológico. Esse tipo tem mais a ver com atitude do que com teologia. Nesse caso, é melhor inverter a ordem e chamá-lo de xiita fundamentalista. Na verdade, xiitas podem ser encontrados em qualquer dos campos protestantes. A propalada tolerância dos liberais, neoliberais e neo-ortodoxos é mito. Há xiitas liberais, neoliberais, neo-ortodoxos, e obviamente, xiitas fundamentalistas. Teoricamente, alguém poderia ser um fundamentalista histórico e denominacional e ainda não ser um xiita.
Por fim, o fundamentalista teológico, um outro sentido em que o termo é muito usado. O fundamentalista teológico se considera seguidor teológico dos fundamentalistas históricos e simpatiza com a luta deles. Sem pretender ser exaustivo, acredito que são considerados fundamentalistas teológicos atualmente os que aderem aos seguintes conceitos ou a parte deles: a inerrância da Bíblia (sobre isso vou falar noutro post), a divindade de Cristo, o seu nascimento virginal, a realidade e historicidade dos milagres narrados na Bíblia, a morte de Cristo como propiciatória, sua ressurreição física de entre os mortos, seu retorno público e visível a este mundo, o conceito de verdades teológicas absolutas, o conceito de que Deus se revelou de forma proposicional, a aceitação dos credos e confissões da Igreja Cristã, a adoção do método gramático-histórico de interpretação bíblica, uma posição conservadora em assuntos como aborto e eutanásia, a preferência pela pregação expositiva, gosto pelos escritos dos puritanos antigos e modernos (vixe, lá vou ter que escrever um post sobre isto também...), a rejeição do liberalismo teológico e da neo-ortodoxia, a crença que Deus criou o mundo em sete dias, a rejeição da ordenação feminina, não-rejeição da pena de morte e outros. Há quem queira acrescentar a essa lista os que votaram contra o desarmamento, são contra o esquerdismo brasileiro, gostam dos Estados Unidos, e mais recentemente, os que adicionaram à lista de favoritos o blog de Norma Braga e o Tempora-Mores...
Em linhas gerais, o fundamentalista teológico acredita que a verdade revelada por Deus na Bíblia não evolui, não cresce e nem muda. Permanece a mesma através do tempo. A nossa compreensão dessa verdade pode mudar com o tempo; contudo, essa evolução nunca chega ao ponto radical em que verdades antigas sejam totalmente descartadas e substituídas por novas verdades que inclusive contradigam as primeiras. O fundamentalista teológico reconhece que erros, exageros e absurdos tendem a ser incorporados através dos séculos na teologia cristã e que o alvo da Igreja é sempre reformar-se à luz dos fundamentos da fé cristã bíblica, expurgando esses erros e assimilando o que for bom. Admite também que existe uma continuidade teológica válida entre o sistema doutrinário exposto na Bíblia e a fé que abraça hoje.
Acho que é aqui que está a grande diferença entre o fundamentalista teológico e o neoliberal. Esse último acredita na evolução da verdade a ponto de sentir-se comissionado a reinventar a Igreja e escrever novas confissões de fé.
Muitos me chamam de fundamentalista. Bom, não posso ser fundamentalista histórico, pois nasci muito depois da luta de Machen. Contudo, sou fã dele, que era um perito em Novo Testamento. Não sou um fundamentalista americano, pois sou brasileiro (apesar do nome), nunca recebi um tostão de McIntire e sou amilenista. Aliás, nem conheci McIntire pessoalmente. Fui fundamentalista denominacional por decisão dos meus pais quando eu tinha doze anos. Saí após conversão e entrada no ministério pastoral. Também não me acho xiita. Há controvérsia sobre isso, eu sei.
Na categoria de fundamentalistas teológicos encontramos presbiterianos, batistas, congregacionais, pentecostais, episcopais, e provavelmente muitos outros. É claro que nem todos subscrevem todos os pontos acima e ainda outros gostariam de qualificar melhor sua subscrição. Contudo, no geral, acho que posso dizer que os fundamentalistas teológicos não fariam feio numa pesquisa de opinião sobre o que crêem os evangélicos brasileiros. Por esse motivo, e por achar que o assim chamado fundamentalismo teológico é simplesmente outro nome para a fé cristã histórica, não fico envergonhado quando me rotulam dessa forma, embora prefira o termo calvinista ou reformado.
Como link para esse post, sugiro os artigos que tenho escrito sobre o assunto no site da Editora Vida Nova (http://www.teologiabrasileira.com.br/).